quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Hoje em Braga




















Croissants e pão quente por perto das paredes onde o dono mandou escrever algumas letras da história de Portugal. Um café pelo preço de sessenta cêntimos, uma denúncia pela culatra e uma reportagem perdida. Coisa pouca. Nove e um quarto na parede, estava toda esta pequenez por acontecer.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O azar do lugar certo à hora errada




















O homem sentado ao meu lado no balcão do café faz-me lembrar da teoria demolidora da câmara do Porto, segundo a qual, o indício ou evidência da existência de droga num prédio se resolve com a destruição do mesmo, do prédio.
Porque estou sentado à espera de um café e de meia torrada, o cheiro do homem sentado ao meu lado vem até ao meu nariz e o que a seguir vos digo foi o que a seguir cheirei: mijo, suor e merda. Aqui chegado a esta condição, se eu fosse como a câmara do Porto, eu, para resolver o problema do mau cheiro, mandava implodir o nariz, destruia-o por completo, à bomba. Azar o meu, o de não ter no rosto um património imobiliário.

A utilidade do televisor no guarda-vestidos






















Ao lado direito da entrada principal do teatro Nacional de S. João, no Porto, nesse lugar onde morrem duas ruas e uma praça, acaba de estacionar um carro de reportagem da RTP. Os comedores, ao balcão do Gazela, voltaram-se todos para o Renault Clio e sem nunca terem deixado de mastigar, continuaram a seguir os passos do condutor, que acabou por entrar no lugar de onde vinham, e onde estavam, todos os olhares curiosos. O condutor teve o tempo de antena correspondente ao esvaziar de meio copo de príncipe, falou com os amigos que estavam outra ponta do balcão, que por acaso éramos nos, e foi embora.
Veio até nós o senhor que tem a profissão de arranjar lugar e organizar o espaço a quem ali chega e tem de comer em pé. Vocês também são da televisão? Ainda me lembro de ter a televisão no guarda-vestidos. Foi há trinta e seis anos. Vinham os fiscais da RTP de surpresa. E nós escondíamos sempre a televisão dentro do guarda-vestidos. Era para não pagar a taxa.

Na parede à direita da parede onde está este relógio - e o reflexo da lâmpada - o televisor está na SIC, durante as notícias, por volta desta hora. Na RTP não, porque podem chegar a qualquer momento os fiscais da RTP e entre o balcão, os bancos, os pires dos cachorrinhos, os copos de cerveja e as chávenas de café,  a ventoinha no tecto e as escadas para a cave e para o primeiro andar, não há espaço para um guarda-vestidos.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A improvável história de Benedito Rafael





















A vontade de nascer de Benedito Rafael foi tornada pública dois dias antes do natal. A futura mãe lia e comentava títulos de revistas cor de rosa com duas amigas que também liam e comentavam títulos de revistas cor de rosa. Havia um bule de porcelana branca em forma de elefante, havia chávenas vermelhas, quadradas, havia migalhas e vestígios de manteiga derretida em guardanapos de papel.
Numa mesa à esquerda, estava para ali remitido o pai, o futuro avô, encostado à janela, sozinho. A ditadura do tamanho das páginas do jornal Expresso não permitia companhia à mesa. O anúncio do nascimento de Benedito Rafael foi um objectivo a longo prazo. A futura mãe não tinha namorado, nem pensava em casar. Não tinha nada disso, só tinha um nome: Benedito Rafael. Aquele filho era uma certeza absoluta para um dia mais tarde, foi assim comunicado aos mais próximos, avô incluído, enquanto os títulos das revistas cor de rosa apareciam e desapareciam do tampo da mesa das raparigas de treze anos. O barulho da moagem do café esteve sempre por baixo deste acontecimento.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Calculadora das vezes em que




















Uma vez foi ao tomar um café, por baixo das escadas rolantes do parque nascente. Mas já me aconteceu à porta de um hotel em Birmingham. É inevitável acontecer dentro de lojas de roupa, especialmente dentro de lojas de roupa de mulher. Num táxi, um vez foi num táxi. Num Macdonlad´s em Dublin, às duas da manhã, numa única ocasião sem exemplo. Num restaurante japonês, ao almoço, na rua Old Arbat, em Moscovo. Numa loja de livros em Gaia e num alfarrabista do Porto. No café encostado ao balneário do Clube de Futebol Serzedo. No carro de reportagem a caminho dos estádio do Dragão. No centro comercial do estádio de Alvalade. E julgo que também no aquecimento das equipas no estádio da luz. Houve um dia na esplanada de um café na praia da Aguda, ao passar de bicicleta. Ao pedalar no passeio dos prédios azuis em Miramar. Parado no carro à espera que o comboio passe. No comboio alfa a caminho de Lisboa. No comboio intercidades no regresso ao porto. No aeroporto de Marraquexe. Na casa de banho do Francisco Sá Carneiro.  Entre a sopa e a carne do almoço. Antes do whisky do jantar. Abrigado. Ao ar livre. De manhã,  à tarde e à noite. A coisa começa com um piano a tocar sozinho e prossegue com a Adele a dizer someone like you e a voz dela. Em toda a parte.

O aeroporto (3)




















Dois dois, nove quatro três, dois quatro zero zero. Aeroporto do Porto, a sua chamada está em espera. Porto airport, your call is on old... e o mesmo  aviso em francês e em italiano.
Bom dia, é por causa do cancelamento dos voos para Genebra e Zurique. - Vou passar ao balcão da TAP. Obrigado. Bom dia, os voos para Genebra e Zurque foram cancelados porquê? - Não foram cancelados. Foram transformados num único voo, com escala em Zurique e destino Genebra. Obrigado. Bom dia.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Há 136 dias (uma breve nota antiga perdida no bloco)









O norte é uma cara com rugas. Uma barba espessa. Olhos de pescador no mar agitado. É uma palavra de pedra. 
Norte é um par de lágrimas nos ossos do rosto.  Um precipício. 

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Amarelo não





















Entrar em Matosinhos em baixa rotação, antes das nove horas da manhã, numa viagem que vem da Maia, como quem traz o sol para mais perto do mar. Num carro de simpatia, oferecido por um dia, em troca de uma revisão na marca. O exterior, cinzento mate, merecia algo mais do que o amarelo limão das costuras dos bancos em pele e do tabliê. Mas fica muito bem na fofografia.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O que aquela mulher fez já não se faz





















Os relógios da estação de São bento estão parados no meio-dia. A senhora do restaurante lamenta o facto de não haver clientes.Há pessoas à espera de um autocarro que não vai chegar. Não há nuvens. O outono tem vinte graus. A praça de táxis volta ser como era antigamente, está pintada de verde e preto. Um pouco acima do lugar onde está o camião branco, do outro lado da rua, perto do muro de estação de comboios, vem uma mulher velha a descer, uma mulher que pára e que apioada numa canadiana, abre as pernas, mija de pé contra o chão e contra as pernas. A cidade continua a viver, a mulher termina, sacode as ancas, segue em frente, vai embora.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

O maleiro de Maria Eugénia do Montijo





















Jura lê-se Jiurrá. É uma cidade francesa na fronteira com a Suiça. Foi buscar o nome às montanhas Jura, montanhas que separam o rios Reno e Ródano. A breve lição de geografia termina com a distância entre Jura e Paris: quatrocentos quilómetros. O maleiro fez os quatrocentos quilómetros a pé e conquistou Paris enquanto desenhador e construtor das malas da imperatriz Maria Eugénia do Montijo, mulher do imperador Napoleão III.  Maria Eugénia do Montijo nasceu em espanha, em Granada, e morreu em Espanha, em Madrid.

Foi o princípio da  marca Louis Vuitton, com o nome do maleiro, malletier, mais popular do império.
É pública a colaboração dos herdeiros com o regime nazi, durante a ocupação francesa na segunda guerra mundial, mais de cinquenta anos depois da morte do homem das malas de viagem. A reputação não estragou as malas. Os baús são para isso mesmo. Para guardar até cair no esquecimento.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Gonçalo para quem não foi





















Numa sala do primeiro andar do palacete dos Viscondes de Balsemão todas as cadeiras estão ocupadas e todas as cadeiras são insuficientes. Há pessoas em pé encostadas às paredes, junto à porta lateral e junto à porta do fundo, no corredor e na antecâmara da sala, que estava ali para vender livros e que acabou por ali estar para vender livros e ter gente a olhar para, e ouvir , o, escritor. O escritor entrou.
O escritor e o leitores estão ali para enfrentar as palavras sem o esconderijo do papel. Começa o escritor. Estaria mais confortável se as cadeiras estivessem todas vazias. Sentia-se mais escritor antes de começar a ser editado. Esteve dez anos sem ter sido editado por vontade própria. Para ele editar é quase criar ruído na escrita. Distrai do acto principal. Ele diz que escrever mais rápido faz a escrita sair melhor. E diz que editou tarde porque precisou de por tempo entre ele e a obra. " só não me atiro de uma ponte porque penso no que vem depois do livro".

Só escreve um livro de cada vez: "não passo para outro animal sem matar o que tenho em mãos". O estado de inconsciência pega-lhe nas palavras: "se sei o que vou escrever, não escrevo". Já sabe como vai acontecer e o saber o que vai acontecer é uma coisa que já está acabada e que não precisa de ser escrita.

Acrescenta: "estou agora a escrever uma coisa que ainda não sei o que vai ser". Acrescenta: "escrever é estar perdido numa cidade e começar a reconhecer os sítios".

Recusou e recusa, sempre e sempre, ofertas maravilhosas para escrever em sossego. Recusou e recusa. Precisa da cidade. Das pessoas. Para escrever.

Disse que o livro é uma máquina de isolamento. Única. Uma igreja portátil. Silêncio.

Tem o tempo para a escrita escalado. Escreve de manhã e não aceita fazer mais nada de manhã. Defendo o tempo para a escrita com violência, se for caso disso. Como uma metralhadora até.

Lê as Cartas a Lucílio, de Séneca. Lê A Dança da Morte, de Gesualdo Bufalino.
Assina-me quatro livros dele.
Gonçalo M.Tavares. Nasceu em Luanda em 1970. Não é africano. É todo português. Filho de militar. Escritor.

O aeroporto (2)





















Aos polícias não fardados, com colete preto, com a missão de observar o comportamento das claques de futebol, chamam-lhes "spotters", e eles têm de facto a palavra "spotter" escrita nas costas pelo coleteiro. A palavra observador definiria melhor o trabalho destes homens, mas não cabia nos coletes. E em Portugal a policia até tem as costas largas.
Os dois polícias de colete preto estavam ali para observar o treinador do FC do Porto e depois de o terem observado, ao longo de todo o terminal destinado às partidas, observaram de muito perto o avançado Hulk e não foi para tirar a limpo se o cabelo estava amarelo ou se estava preto.
Havia mais dez polícias de segurança pública. Havia gente a partir para um número impreciso de destinos. Havia uma hora e trinta minutos no relógio da cidade do Porto. Oito e trinta em Nova Iorque, onze e trinta no Rio de Janeiro, duas e meia em Paris, nove e meia da noite em Pequim e dez e meia em Tóquio. É o que dizem as horas, fora deste elevador, quando vai uma equipa de futebol portuguesa a caminho da Ucrânia.

Volta à Madeira em bicicleta





















Habituámo-nos à  frase do porco a andar de bicicleta e  a fazer dela o depósito onde se acumula tudo aquilo que é impossível de acontecer. A edição do Público desta manhã conta-nos que a Ilha da Madeira vai gastar três milhões de euros em iluminações de natal, numa adjudicação directa (ou sem concurso público), e com ao dinheiro a ser já retirado do orçamento de 2012. A ser verdade, o porco continua a andar de bicicleta.

(o porco a andar de bicicleta: hábito luso retratato com o relógio do café Embaixador, na rua de Sampaio Bruno, no Porto. A marca de água não tem culpa nenhuma)

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Os bandidos (1)




















Aprender a viver: o garfo e a faca utilizados para traçar e levar à boca feijões brancos com chocos aos pedaços não devem ser utilizados depois desta derradeira entrada - a feijoada de chocos - no ataque à refeição. O molho seca e os talheres ficam perros na boca. Esta foi a lição número um, e única, na modalidade de ataque aos robalos quando à mesa.
Dois tachos de arroz malandro de feijão vermelho para cinco bandidos é o rácio perfeito. E porque já somos mais conhecidos do que os robalos na cozinha deste lugar, o peixe grelhado chega debaixo do nariz, do jeito que nós gostamos: é sem espinhas.
Os copos vazios têm esperança de vida reduzida, ao contrário da garrafa de whisky do dono, que se desmultiplica como se multiplicava o pão do pescador.
E o que fazem estes relógios todos nesta conversa? Confirmam que o tempo que passamos juntos não se compra em lado nenhum. Encontra-se com alguma sorte e bons amigos.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Amanhã é domingo




















O de blêizer preto é o Tiago, o senhor de cabelo grisalho é o pai do Tonny, a senhora é a mãe. Seguem à frente deles de chapéu preto a Janine, a Raquel não se vê daqui, mas vê-se daqui a cabeça do Marco, ao lado do Nelo e na frente do grupo, o Júnior e o Mongas conversam. O Aníbal está espera de todos ao lado da máquina dos bilhetes. O comboio demorou quarenta minutos a chegar a Cête desde que partiu de Campanhã. À porta da estação está um táxi Mercedes 300 D de 1980, carrinha, já não tem resistência, tem uma ligação mais directa que faz ligar o carro num botão azul bebé. O destino? O restaurante do senhor que tem os cabritos á nossa espera. Enquanto o táxi vai e o táxi vem, nós já fomos todos. O vinho, a broa, o presunto, o vinho, as azeitonas, o pão, o vinho e o tempo a passar como deve passar numa tarde de sábado. Devagar, porque amanhã é domingo.
Lá muito na frente, a camisola laranja do Tonny vai guardar táxis para nós irmos. E nós fomos.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Raparigas em pose de ganadaria





















(relógio da estação de campanhã com reflexo do banco no vidro da carruagem)

O príncipe não pára quieto dentro do copo que está cima do balcão. Olhar é como estar a ver uma onda por dentro: amarela, sem sal, mas que continua a ter espuma branca à superfície. Nesta corrente navegou um cachorrinho primeiro e navegou um preguinho com queijo posteriormente na segunda onda. O Américo trata da carne, o Costa não deixa morrer os copos. O televisor passa um programa com palmas e gente sentada. Contrataram raparigas em pose de ganadaria e com elas o cenário não sei se resolve ou, pelo contrário, se complica ainda mais.
O melhor do mundo está no prato. Bendito Américo. Bendito Costa.
O comboio ao ir embora de São Bento não pode passar por aqui?

Correio breve de Matosinhos (1)





















Veio, com a névoa das manhãs de Novembro, um elemento novo: o cheiro das fábricas de conserva. O odor é de peixe, mas de peixe a quem já aconteceu qualquer coisa. Do mês de Oububro, Matosinhos já tinha acrescentado às nossas vidas uma casa de chá que nos faz sentir comos e estivessemos dentro de uma chávena de chá quentinho; já nos tinha multiplicado a quantidade e a aqualidade dos almoços, há por cá mais portas abertas e melhores portas abertas, mais cozinhados de carne e muito mais peixe fresco; já nos tinha colocado mais pessoas no local de trabalho, com o tempo as caras tornam-se familiares, apesar de ainda não as conhecermos todas; já nos tinha apresentado uma esplanada voltada para um chão de relva e madeira, três paredes brancas e duas portas em vidro; já nos tinha substituído os computadores, duplicado as ilhas de montagem e já nos tinha posto como cenário de um estúdio quatro vezes maior. Matosinhos começou bem e está a andar bem. O trabalho continua a ser trabalho, mas tem outro sorriso.

O aeroporto (1)






















Aeroporto Francisco Sá Carneiro, Porto - Uma hora mais tarde, há-de aterrar um avião proveniente de Faro com a comitiva do FC do Porto, avião sem golos, com um penálti falhado. Meia hora mais tarde vai chegar um homem de estatura baixa, a ficar calvo, vestido com a camisola do Porto do ano passado, com um cachecol do Porto amarrado ao pulso direito. Noventa mintuos mais tarde, vai passar por aqui todo o grupo de jogadores do empate em Olhão, o homem do cachecol e da camisola vai cantar campeões e vai pintar de azul e branco, apenas com uma demão, o silêncio de todo aeroporto.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

A montra, o fantasma e o francês





















A montra portuguesa, une montre de França, e um homem reflectido no vidro como um monstre. Nada disto aconteceu às dez horas e dez minutos, nem aconteceu de manhã, nem aconteceu de  noite, foi durante a tarde, mas tudo isso é irrelevante aos olhos o manequim, que não os tem, e aos meus, que os tenho com sono, aqui na posição de fantasma com dedo no gatilho. Clic. Au revoir.

domingo, 6 de novembro de 2011

Nu artístico





















Leio o jornal da última para a segunda página, mas só depois de ter visto a primeira. O meu último defeito foi ter colocado a colher e o prato da sopa na máquina de lavar e não me ter lembrado que estava de gravata. O meu último prazer foi o som da lâmina da faca com cabo de madeira ao tirar a casca de uma maça Fuji vermelha, dura, suculenta. A minha próxima vontade é ler o artigo de uma revista de domingo sobre os inspectores da polícia judiciária. A minha última leitura foi as três páginas do testemunho de uma mulher, da qual agora não lembro o nome, sobre Rafael Barrios n´Os Detectives Selvagens. O meu último capítulo do amor pelas coisas simples é o de amar de perdição quem teve a ideia de juntar numa só peça as palavras pijama, xadrez e algodão. O meu último trabalho foi sobre a dificuldade dos homens perante um cenário de luz apagada. A minha última viagem foi uma distância de 20 quilómetros. O meu último destino foi esta casa. Cheguei. Espreitei o jornal numa folha de vidro. Comi a sopa toda, tratei da louça, mas devia ter tirado antes a gravata, vesti um pijama que é o verão encostado ao corpo, comi uma maça vermelha, escrevi numa maçã cinzenta em alumínio.

(a foto não é um hospital. É a Faculdade de Psicologia do Porto em dia de congresso organizado pelo Bloco de Esquerda)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Os vizinhos





















Moram todos num prédio chamado estante, em andares chamados prateleiras, são da espécie chamada livro, estão todos com o lombo voltado para quem passa, estão entre quem passa e a parede.
No último andar, que é o quarto esquerdo, o Paul Auster armado em Livro das Ilusões, mora porta com porta com o Reinaldo Arenas, a passar a fase de O Mundo Alucinate. O Germado Almeida é vizinho de casa do Jorge Amado.
No quarto andar direito deste último piso, o Roberto Bolaño ocupa quatro assoalhadas, que ficam ao lado do T1 Farenheit 451 do Ray Bradbury. Neste corredor existem portas com os nomes do Bukowski, do Capote, do Cela, do Cardoso pires, do Stephen Crane, do Darwin. (empoleirados neste andar: José Milhazes e Harold Pinter).
Vamos descer ao terceiro piso. O Middlesex do Eugenides está gémeo das Regras da Atracção, do Bret Easton Ellis. Não vamos mais longe e encontramos As Putas Tristes, do Garcia Marques, A Praia, do Garland, o Ellroy com Sangue na Lua, uma série de portas com o nome do Nick Horny, e a Ninfa Inconstante do Guillermo Cabrera Infante. E o Roman Gary. (empoleirados neste andar: Jonathan Frazen e Valter Hugo Mãe).
No lado direito deste terceiro andar: Ulisses assinado pelo James Joyce. O Ébano do Kapuscinski e as Andanças com Heródoto. Quatro esteios do Lobo Antunes, o Vargas Llosa e o Maradona. A ter de escolher, teria escolhido casa aqui. (empoleirados neste andar: mais Vargas Llosa e Gonçalo M.Tavares).
O segundo andar tem o Millás, o Obama, Henry Miller, o Morávia, George Orwell, Peréz-Reverte. O Cormac Mccarthy. (empoleirados neste andar: Alexandra Lucas Coelho porcima do Philip Roth).
No segundo andar, direito, mora o Eça de Queiróz, o Lucas Pires, o Saramago, tantas vezes o Sepúlveda e tantas vezes o Daniel Silva. (não há empoleirados neste apartamento).
Rés-do-chão esquerdo: Mark Twain, Irvine Welsh, Saramago fora do lugar, um fininho e nunca lido Oscar Wilde, outro Garcia Márquez fora do lugar, também fora do lugar um Lobo Antunes e outro M.Tavares. (empoleirados neste andar: dois M.Tavares)
Rés-do-chão direito: qualquer coisa de Kundera e um hall de entrada. Livros de capa dura.
(outros que por lá estão pediram anonimato e respeito pela privacidade)

E agora é ficar sentado e imaginar a viagem que todos não fariam num comboio até sei lá onde .

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Medalha de ouro





















A janela dupla com quatro metros, duas portas, oitos vidros. A cor do sol nos vidros das outras casas. A madeira do chão desta casa. A voz do Justin Vernon, os pianos, uma cadeira vermelha na varanda, o fim das árvores mais altas, o fumo das chaminés na encosta, estar cá dentro sem luz e não estar às escuras, e o silêncio, o silêncio nesta sala,  com a música desta cor, ouro do outono, num segundo andar, sentado no chão.

(Aquela hora, oito horas e oito minutos, naquele dia, foi uma hora feliz)

sábado, 29 de outubro de 2011

A fotografia desta sexta-feira





















Um laboratório de análises clínicas pede o envio do número do bilhete de identidade ou do cartão do cidadão para poder mandar por mail o resultado dos testes ao sangue. São oito da manhã. O número de CC é enviado. Esta fotografia é tirada enquanto a resposta não vem, quando esta fotografia acaba de ser tirada, a resposta vem, mas não é uma resposta, é um pedido, e o pedido pede: "envie por favor o número do bilhete de identidade ou do cartão de cidadão". Já enviei. CC, cartão de cidadão.
Faltam cinco minutos para o meio-dia e o resultado ainda não veio. Um telefonema para o laboratório resolve tudo, o resultado é enviado para a médica, a médica telefona a dizer que o analisado tem saúde para dar e vender. Ele diz que não vai fazer uma coisa nem a outra.
É meio-dia, os táxis em Matosinhos também têm ementas de restaurante para aos passageiros, dois canais de  televisão apostam na gravação do momento. Às duas da tarde num outro ponto da cidade, as marmitas, seis, sobre as mesas, duas, apresentam uma alternativa ainda mais low-cost de alimentação. Trinta e sete anos de PS e PSD enfiaram a classe média portuguesa numa marmita ao almoço. Estamos no tupperware  com a consciência tranquila. Antes isso do que um cartão dourado e almoços com vista para o paraíso a troco de blow-jobs for the boys. O sangue está limpo.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Em nome do pai



Com o número 21, de costas para nós, está um brasileiro de Curitiba, que só está ali por causa do pai: o pai é que o encorajou a jogar futebol com o pé esquerdo quando ele, Adriano, em miúdo, teve uma lesão gravíssima no pé direito. Em 2003 foi campeão do mundo de sub-20. Foi para Sevilha jogar mais de duzentos jogos de futebol antes de chegar a esta fotografia. A cara daquele rapaz mais alto ao fundo do Adriano também é muito futebol em nome do pai. O pai chama-se Carles, foi guarda-redes do Barcelona, é Busquets como o filho, Sérgio, o que aparece ao fundo do Adriano. Sérgio é catalão de Sabadel. Fez a escola no Barcelona B de Pep Guardiola. Este mais baixinho com o zero na camisola, tem futebol nota dez no pé esquerdo, no pé esquerdo e da cabeça aos pés. O primeiro contrato foi assinado num guardanapo de papel entre cafés num café, partilhados pelo conhecidissimo Carles Rexach e o desconhecidissimo Jorge Messi, pai deste Lionel. Dizer mais o quê? É um jogador à minha altura:1,70m. O rapaz de cabelo comprido tem pele azul-grená. Já vestiu as duas cores em mais se quinhentos jogos, mas esteve muito perto de não ter sido ninguém no futebol. O pai quis que ele abandonasse a bola quando ele se lesionou num ombro no tempo em que era guarda-redes. Ele guardou as luvas, mas não abriu os livros. Foi antes para ponta-de-lança e coisa não resultou. Foi antes para médio-defensivo e a coisa não resultou. Como já não podia voltar à baliza, por causa do ombro, havia apenas mais uma posição a ocupar antes de ser mandado embora pela porta pequena do futebol regional espanhol. Foi o melhor defesa jovem do Pobla de Segur. Foi para o Barcelona e aí já nem o pai insistia tanto nos estudos. Hoje chamam-lhe touro e Tarzan a este rapaz com ar de Sansão chamado Puyol. O sete é um dos pontas de lança mais baixos do mundo:1,75m. El guaje, que dizer o míudo e assim que o tratam. Em miúdo, com quatro anos, fracturou o fémur da perna direita. O pai, um mineiro que sonhava ter um filho futebolista, insistiu para ele chutar com o pé esquerdo e el hoje é um dos ambidestros mais famosos de Espanha. David Villa deixou Valência e o centro da área. Está a voar nas asas do Barcelona e continua nas bocas do mundo. Na outra asa, o autor deste golo, o dezassete, outro jogador à minha altura (1,70m), o único a marcar um golo em todas as competições do mundo numa só época. É o filho do senhor Ledesma. É o Pedro, Pedrito, Pedro Rodriguez, Pedro Rodriguez Ledesma. Os outros dois são os pais da melhor equipa de futebol do mundo. Estão no Barcelona desde quase sempre, conseguem ser qualquer um dos orgãos vitais deste corpo azul e grená que há-de sobreviver à passsagem do tempo.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Nem é tarde nem é cedo





















Seria incapaz de entrar num restaurante, invadir a cozinha, escolher os ingredientes, cozinhar e pagar a conta. Como também não seria capaz de entrar no consultório do dentista, injectar a anestesia, arrancar um dente e passar o cartão na máquina do banco. E nunca na vida entraria na oficina com os olhos postos nas latas, disposto a sangrar o carro, a encher com óleo novo e a deixar um cheque. Nem tão pouco teria o vagar de no talho desfazer o porco, fatiar a vaca e depois resolver a conta com o próprio bolso. Mas se tiver de chegar a um armazém e deixar lá ficar dinheiro em troca de um móvel para montar em casa, isso é ginástica sueca no orçamento familiar. Não é trabalhar de borla para o vendedor.

(primeira foto oferecida ao blog. Obrigado ZM)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Vinte minutos para amanhã





















Não saber o lugar onde esta imagem aconteceu. Não saber o dia em que foi. Não saber se estávamos atrasados ou se íamos chegar a tempo, se o verbo era o ir ou o vir. Saber que foi com o carro estacionado, o motor desligado, o rádio ligado, por acaso ali, de noite, quase de um dia para o outro, este minuto perdido. Havia música a encher o espaço, mas qual? Havia gente dentro o carro, mas quem? Havia um encontro combinado, mas porquê? E no fim saber apenas que este relógio está atrasado uma quarto de hora e que já só faltam vinte minutos para amanhã.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O arquipélago do almoço





















Mesa posta para oito pessoas, em que se sentaram cinco homens, dos quais um com barba, dois sem pêlos na cara, mais dois com bigode, um desses com pêra. Sobraram portanto três pratos, três copos, três talhares, três guardanapos de papel.
Para a mesa vieram pedidos de lombo assado, três, bacalhau à Gomes de Sá, um, frango com ervilhas, um, papas de sarrabulho, para um. Uma garrafa de água, dois copos com cerveja, ruiva e loira, um refrigerante castanho, uma caneca com vinho, tinto. Foram três cafés para terminar os pedidos.
A conta trouxe cinco parciais de cinco euros e vinte e sete cêntimos. Em Matosinhos. Na Casa Açoreana.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Chambre de bonne





















Nos filmes americanos os parques de estacionamento são lugares onde acontecem coisas más, na realidade europeia, este parque de estacionamento é uma coisa boa, cheia de vontade de partir. Nos filmes americanos, uma pessoa chega ao aeroporto para ir, nesta realidade europeia, uma pessoa vai ao aeroporto ver uma equipa de futebol a entrar num avião. Nos filmes americanos não há chambres de bonne, nesta realidade europeia há uma vontade louca de comprar dois bilhetes para Paris, escolher um arrondissement, escolher uma rua, escolher uma porta, bater a uma porta, perguntar se há vagas lá em cima no último andar, pedir chambre de bonne para duas pessoas, subir, subir andares, oito andares, andares, sete andares, o que tiver de andar, para subir pelas escadas e descer com o coração nas mãos e misturar os pés com a cidade. A cabeça já lá está.

(chambre de bonne é um micro alojamento no último andar de um prédio, independente do apartamento das famílias. Bonne por causa das criadas, que nos tempos senhoriais eram "bonne à tout fair". Há um quarto destes na página 235 dos Detectives Selvagens, do Roberto Bolaño)

Histórias de homens à prova de bala (1)





















Norte de Portugal, anos 80, resquícios do ensino secundário.
Estás com 12 anos, és novo no meio, não és dali, aqueles amigos não os teus vizinhos, não são os teus colegas de equipa no futebol, aquela freguesia não é a tua. E estás com 12 anos. O que corpo que tens já não é o que tinhas, foste de férias com uma voz, vieste do verão com outra, és alguma coisa à espera de acontecer.
Estás com 12 anos, os que estão com 18 têm pêlos na cara, pêlos nas pernas e tu não, os que estão com 18 anos estão como se estivessem da idade dos teus pais. É há sempre entre os que estão com 18 anos aquele que é o mais alto, o mais forte, o que veste mais roupas diferentes ao longo da semana, e conduz carros, coisa que só os pais e as mães fazem, e conduz motas, e conduz todos os outros a um estado dormente, reverente, simpático, respeitador, respeitador de quando o respeito tem aquela cara que o medo tem, e ele assim, tem os amigos todos que quer porque ninguém um inimigo assim.
Hoje fiquei a saber que morreu num acidente de viação há mais de vinte anos. Os meus sentidos pêsames.


- relógio escolhido por ter o 12 (XII) bem visível

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Um mais um é uma conta de multiplicar





















Mensagem (MMS)recebida às treze horas e onze minutos. É a montra de uma loja de meias num centro comercial. Acredito que a Raquel se lembrou de mim no mesmo segundo, que demorou mais tempo a procurar o telefone dentro da carteira do que a tirar a fotografia, que sorriu, que partilhou com as amigas o motivo da fotografia, este, que voltou a sorrir quando o indicador escolheu a tecla virtual de enviar, que me fez sorrir, surpreendido, ao abrir uma fotografia que vinha com esta montra, esta variedade de quadrados, redondos, azuis, vermelhos, dourados, grandes e pequenos, a hora multiplicada, e nós entendidos, um com o outro.