sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O que aquela mulher fez já não se faz





















Os relógios da estação de São bento estão parados no meio-dia. A senhora do restaurante lamenta o facto de não haver clientes.Há pessoas à espera de um autocarro que não vai chegar. Não há nuvens. O outono tem vinte graus. A praça de táxis volta ser como era antigamente, está pintada de verde e preto. Um pouco acima do lugar onde está o camião branco, do outro lado da rua, perto do muro de estação de comboios, vem uma mulher velha a descer, uma mulher que pára e que apioada numa canadiana, abre as pernas, mija de pé contra o chão e contra as pernas. A cidade continua a viver, a mulher termina, sacode as ancas, segue em frente, vai embora.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

O maleiro de Maria Eugénia do Montijo





















Jura lê-se Jiurrá. É uma cidade francesa na fronteira com a Suiça. Foi buscar o nome às montanhas Jura, montanhas que separam o rios Reno e Ródano. A breve lição de geografia termina com a distância entre Jura e Paris: quatrocentos quilómetros. O maleiro fez os quatrocentos quilómetros a pé e conquistou Paris enquanto desenhador e construtor das malas da imperatriz Maria Eugénia do Montijo, mulher do imperador Napoleão III.  Maria Eugénia do Montijo nasceu em espanha, em Granada, e morreu em Espanha, em Madrid.

Foi o princípio da  marca Louis Vuitton, com o nome do maleiro, malletier, mais popular do império.
É pública a colaboração dos herdeiros com o regime nazi, durante a ocupação francesa na segunda guerra mundial, mais de cinquenta anos depois da morte do homem das malas de viagem. A reputação não estragou as malas. Os baús são para isso mesmo. Para guardar até cair no esquecimento.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Gonçalo para quem não foi





















Numa sala do primeiro andar do palacete dos Viscondes de Balsemão todas as cadeiras estão ocupadas e todas as cadeiras são insuficientes. Há pessoas em pé encostadas às paredes, junto à porta lateral e junto à porta do fundo, no corredor e na antecâmara da sala, que estava ali para vender livros e que acabou por ali estar para vender livros e ter gente a olhar para, e ouvir , o, escritor. O escritor entrou.
O escritor e o leitores estão ali para enfrentar as palavras sem o esconderijo do papel. Começa o escritor. Estaria mais confortável se as cadeiras estivessem todas vazias. Sentia-se mais escritor antes de começar a ser editado. Esteve dez anos sem ter sido editado por vontade própria. Para ele editar é quase criar ruído na escrita. Distrai do acto principal. Ele diz que escrever mais rápido faz a escrita sair melhor. E diz que editou tarde porque precisou de por tempo entre ele e a obra. " só não me atiro de uma ponte porque penso no que vem depois do livro".

Só escreve um livro de cada vez: "não passo para outro animal sem matar o que tenho em mãos". O estado de inconsciência pega-lhe nas palavras: "se sei o que vou escrever, não escrevo". Já sabe como vai acontecer e o saber o que vai acontecer é uma coisa que já está acabada e que não precisa de ser escrita.

Acrescenta: "estou agora a escrever uma coisa que ainda não sei o que vai ser". Acrescenta: "escrever é estar perdido numa cidade e começar a reconhecer os sítios".

Recusou e recusa, sempre e sempre, ofertas maravilhosas para escrever em sossego. Recusou e recusa. Precisa da cidade. Das pessoas. Para escrever.

Disse que o livro é uma máquina de isolamento. Única. Uma igreja portátil. Silêncio.

Tem o tempo para a escrita escalado. Escreve de manhã e não aceita fazer mais nada de manhã. Defendo o tempo para a escrita com violência, se for caso disso. Como uma metralhadora até.

Lê as Cartas a Lucílio, de Séneca. Lê A Dança da Morte, de Gesualdo Bufalino.
Assina-me quatro livros dele.
Gonçalo M.Tavares. Nasceu em Luanda em 1970. Não é africano. É todo português. Filho de militar. Escritor.

O aeroporto (2)





















Aos polícias não fardados, com colete preto, com a missão de observar o comportamento das claques de futebol, chamam-lhes "spotters", e eles têm de facto a palavra "spotter" escrita nas costas pelo coleteiro. A palavra observador definiria melhor o trabalho destes homens, mas não cabia nos coletes. E em Portugal a policia até tem as costas largas.
Os dois polícias de colete preto estavam ali para observar o treinador do FC do Porto e depois de o terem observado, ao longo de todo o terminal destinado às partidas, observaram de muito perto o avançado Hulk e não foi para tirar a limpo se o cabelo estava amarelo ou se estava preto.
Havia mais dez polícias de segurança pública. Havia gente a partir para um número impreciso de destinos. Havia uma hora e trinta minutos no relógio da cidade do Porto. Oito e trinta em Nova Iorque, onze e trinta no Rio de Janeiro, duas e meia em Paris, nove e meia da noite em Pequim e dez e meia em Tóquio. É o que dizem as horas, fora deste elevador, quando vai uma equipa de futebol portuguesa a caminho da Ucrânia.

Volta à Madeira em bicicleta





















Habituámo-nos à  frase do porco a andar de bicicleta e  a fazer dela o depósito onde se acumula tudo aquilo que é impossível de acontecer. A edição do Público desta manhã conta-nos que a Ilha da Madeira vai gastar três milhões de euros em iluminações de natal, numa adjudicação directa (ou sem concurso público), e com ao dinheiro a ser já retirado do orçamento de 2012. A ser verdade, o porco continua a andar de bicicleta.

(o porco a andar de bicicleta: hábito luso retratato com o relógio do café Embaixador, na rua de Sampaio Bruno, no Porto. A marca de água não tem culpa nenhuma)

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Os bandidos (1)




















Aprender a viver: o garfo e a faca utilizados para traçar e levar à boca feijões brancos com chocos aos pedaços não devem ser utilizados depois desta derradeira entrada - a feijoada de chocos - no ataque à refeição. O molho seca e os talheres ficam perros na boca. Esta foi a lição número um, e única, na modalidade de ataque aos robalos quando à mesa.
Dois tachos de arroz malandro de feijão vermelho para cinco bandidos é o rácio perfeito. E porque já somos mais conhecidos do que os robalos na cozinha deste lugar, o peixe grelhado chega debaixo do nariz, do jeito que nós gostamos: é sem espinhas.
Os copos vazios têm esperança de vida reduzida, ao contrário da garrafa de whisky do dono, que se desmultiplica como se multiplicava o pão do pescador.
E o que fazem estes relógios todos nesta conversa? Confirmam que o tempo que passamos juntos não se compra em lado nenhum. Encontra-se com alguma sorte e bons amigos.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Amanhã é domingo




















O de blêizer preto é o Tiago, o senhor de cabelo grisalho é o pai do Tonny, a senhora é a mãe. Seguem à frente deles de chapéu preto a Janine, a Raquel não se vê daqui, mas vê-se daqui a cabeça do Marco, ao lado do Nelo e na frente do grupo, o Júnior e o Mongas conversam. O Aníbal está espera de todos ao lado da máquina dos bilhetes. O comboio demorou quarenta minutos a chegar a Cête desde que partiu de Campanhã. À porta da estação está um táxi Mercedes 300 D de 1980, carrinha, já não tem resistência, tem uma ligação mais directa que faz ligar o carro num botão azul bebé. O destino? O restaurante do senhor que tem os cabritos á nossa espera. Enquanto o táxi vai e o táxi vem, nós já fomos todos. O vinho, a broa, o presunto, o vinho, as azeitonas, o pão, o vinho e o tempo a passar como deve passar numa tarde de sábado. Devagar, porque amanhã é domingo.
Lá muito na frente, a camisola laranja do Tonny vai guardar táxis para nós irmos. E nós fomos.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Raparigas em pose de ganadaria





















(relógio da estação de campanhã com reflexo do banco no vidro da carruagem)

O príncipe não pára quieto dentro do copo que está cima do balcão. Olhar é como estar a ver uma onda por dentro: amarela, sem sal, mas que continua a ter espuma branca à superfície. Nesta corrente navegou um cachorrinho primeiro e navegou um preguinho com queijo posteriormente na segunda onda. O Américo trata da carne, o Costa não deixa morrer os copos. O televisor passa um programa com palmas e gente sentada. Contrataram raparigas em pose de ganadaria e com elas o cenário não sei se resolve ou, pelo contrário, se complica ainda mais.
O melhor do mundo está no prato. Bendito Américo. Bendito Costa.
O comboio ao ir embora de São Bento não pode passar por aqui?

Correio breve de Matosinhos (1)





















Veio, com a névoa das manhãs de Novembro, um elemento novo: o cheiro das fábricas de conserva. O odor é de peixe, mas de peixe a quem já aconteceu qualquer coisa. Do mês de Oububro, Matosinhos já tinha acrescentado às nossas vidas uma casa de chá que nos faz sentir comos e estivessemos dentro de uma chávena de chá quentinho; já nos tinha multiplicado a quantidade e a aqualidade dos almoços, há por cá mais portas abertas e melhores portas abertas, mais cozinhados de carne e muito mais peixe fresco; já nos tinha colocado mais pessoas no local de trabalho, com o tempo as caras tornam-se familiares, apesar de ainda não as conhecermos todas; já nos tinha apresentado uma esplanada voltada para um chão de relva e madeira, três paredes brancas e duas portas em vidro; já nos tinha substituído os computadores, duplicado as ilhas de montagem e já nos tinha posto como cenário de um estúdio quatro vezes maior. Matosinhos começou bem e está a andar bem. O trabalho continua a ser trabalho, mas tem outro sorriso.

O aeroporto (1)






















Aeroporto Francisco Sá Carneiro, Porto - Uma hora mais tarde, há-de aterrar um avião proveniente de Faro com a comitiva do FC do Porto, avião sem golos, com um penálti falhado. Meia hora mais tarde vai chegar um homem de estatura baixa, a ficar calvo, vestido com a camisola do Porto do ano passado, com um cachecol do Porto amarrado ao pulso direito. Noventa mintuos mais tarde, vai passar por aqui todo o grupo de jogadores do empate em Olhão, o homem do cachecol e da camisola vai cantar campeões e vai pintar de azul e branco, apenas com uma demão, o silêncio de todo aeroporto.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

A montra, o fantasma e o francês





















A montra portuguesa, une montre de França, e um homem reflectido no vidro como um monstre. Nada disto aconteceu às dez horas e dez minutos, nem aconteceu de manhã, nem aconteceu de  noite, foi durante a tarde, mas tudo isso é irrelevante aos olhos o manequim, que não os tem, e aos meus, que os tenho com sono, aqui na posição de fantasma com dedo no gatilho. Clic. Au revoir.

domingo, 6 de novembro de 2011

Nu artístico





















Leio o jornal da última para a segunda página, mas só depois de ter visto a primeira. O meu último defeito foi ter colocado a colher e o prato da sopa na máquina de lavar e não me ter lembrado que estava de gravata. O meu último prazer foi o som da lâmina da faca com cabo de madeira ao tirar a casca de uma maça Fuji vermelha, dura, suculenta. A minha próxima vontade é ler o artigo de uma revista de domingo sobre os inspectores da polícia judiciária. A minha última leitura foi as três páginas do testemunho de uma mulher, da qual agora não lembro o nome, sobre Rafael Barrios n´Os Detectives Selvagens. O meu último capítulo do amor pelas coisas simples é o de amar de perdição quem teve a ideia de juntar numa só peça as palavras pijama, xadrez e algodão. O meu último trabalho foi sobre a dificuldade dos homens perante um cenário de luz apagada. A minha última viagem foi uma distância de 20 quilómetros. O meu último destino foi esta casa. Cheguei. Espreitei o jornal numa folha de vidro. Comi a sopa toda, tratei da louça, mas devia ter tirado antes a gravata, vesti um pijama que é o verão encostado ao corpo, comi uma maça vermelha, escrevi numa maçã cinzenta em alumínio.

(a foto não é um hospital. É a Faculdade de Psicologia do Porto em dia de congresso organizado pelo Bloco de Esquerda)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Os vizinhos





















Moram todos num prédio chamado estante, em andares chamados prateleiras, são da espécie chamada livro, estão todos com o lombo voltado para quem passa, estão entre quem passa e a parede.
No último andar, que é o quarto esquerdo, o Paul Auster armado em Livro das Ilusões, mora porta com porta com o Reinaldo Arenas, a passar a fase de O Mundo Alucinate. O Germado Almeida é vizinho de casa do Jorge Amado.
No quarto andar direito deste último piso, o Roberto Bolaño ocupa quatro assoalhadas, que ficam ao lado do T1 Farenheit 451 do Ray Bradbury. Neste corredor existem portas com os nomes do Bukowski, do Capote, do Cela, do Cardoso pires, do Stephen Crane, do Darwin. (empoleirados neste andar: José Milhazes e Harold Pinter).
Vamos descer ao terceiro piso. O Middlesex do Eugenides está gémeo das Regras da Atracção, do Bret Easton Ellis. Não vamos mais longe e encontramos As Putas Tristes, do Garcia Marques, A Praia, do Garland, o Ellroy com Sangue na Lua, uma série de portas com o nome do Nick Horny, e a Ninfa Inconstante do Guillermo Cabrera Infante. E o Roman Gary. (empoleirados neste andar: Jonathan Frazen e Valter Hugo Mãe).
No lado direito deste terceiro andar: Ulisses assinado pelo James Joyce. O Ébano do Kapuscinski e as Andanças com Heródoto. Quatro esteios do Lobo Antunes, o Vargas Llosa e o Maradona. A ter de escolher, teria escolhido casa aqui. (empoleirados neste andar: mais Vargas Llosa e Gonçalo M.Tavares).
O segundo andar tem o Millás, o Obama, Henry Miller, o Morávia, George Orwell, Peréz-Reverte. O Cormac Mccarthy. (empoleirados neste andar: Alexandra Lucas Coelho porcima do Philip Roth).
No segundo andar, direito, mora o Eça de Queiróz, o Lucas Pires, o Saramago, tantas vezes o Sepúlveda e tantas vezes o Daniel Silva. (não há empoleirados neste apartamento).
Rés-do-chão esquerdo: Mark Twain, Irvine Welsh, Saramago fora do lugar, um fininho e nunca lido Oscar Wilde, outro Garcia Márquez fora do lugar, também fora do lugar um Lobo Antunes e outro M.Tavares. (empoleirados neste andar: dois M.Tavares)
Rés-do-chão direito: qualquer coisa de Kundera e um hall de entrada. Livros de capa dura.
(outros que por lá estão pediram anonimato e respeito pela privacidade)

E agora é ficar sentado e imaginar a viagem que todos não fariam num comboio até sei lá onde .

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Medalha de ouro





















A janela dupla com quatro metros, duas portas, oitos vidros. A cor do sol nos vidros das outras casas. A madeira do chão desta casa. A voz do Justin Vernon, os pianos, uma cadeira vermelha na varanda, o fim das árvores mais altas, o fumo das chaminés na encosta, estar cá dentro sem luz e não estar às escuras, e o silêncio, o silêncio nesta sala,  com a música desta cor, ouro do outono, num segundo andar, sentado no chão.

(Aquela hora, oito horas e oito minutos, naquele dia, foi uma hora feliz)