sábado, 29 de outubro de 2011

A fotografia desta sexta-feira





















Um laboratório de análises clínicas pede o envio do número do bilhete de identidade ou do cartão do cidadão para poder mandar por mail o resultado dos testes ao sangue. São oito da manhã. O número de CC é enviado. Esta fotografia é tirada enquanto a resposta não vem, quando esta fotografia acaba de ser tirada, a resposta vem, mas não é uma resposta, é um pedido, e o pedido pede: "envie por favor o número do bilhete de identidade ou do cartão de cidadão". Já enviei. CC, cartão de cidadão.
Faltam cinco minutos para o meio-dia e o resultado ainda não veio. Um telefonema para o laboratório resolve tudo, o resultado é enviado para a médica, a médica telefona a dizer que o analisado tem saúde para dar e vender. Ele diz que não vai fazer uma coisa nem a outra.
É meio-dia, os táxis em Matosinhos também têm ementas de restaurante para aos passageiros, dois canais de  televisão apostam na gravação do momento. Às duas da tarde num outro ponto da cidade, as marmitas, seis, sobre as mesas, duas, apresentam uma alternativa ainda mais low-cost de alimentação. Trinta e sete anos de PS e PSD enfiaram a classe média portuguesa numa marmita ao almoço. Estamos no tupperware  com a consciência tranquila. Antes isso do que um cartão dourado e almoços com vista para o paraíso a troco de blow-jobs for the boys. O sangue está limpo.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Em nome do pai



Com o número 21, de costas para nós, está um brasileiro de Curitiba, que só está ali por causa do pai: o pai é que o encorajou a jogar futebol com o pé esquerdo quando ele, Adriano, em miúdo, teve uma lesão gravíssima no pé direito. Em 2003 foi campeão do mundo de sub-20. Foi para Sevilha jogar mais de duzentos jogos de futebol antes de chegar a esta fotografia. A cara daquele rapaz mais alto ao fundo do Adriano também é muito futebol em nome do pai. O pai chama-se Carles, foi guarda-redes do Barcelona, é Busquets como o filho, Sérgio, o que aparece ao fundo do Adriano. Sérgio é catalão de Sabadel. Fez a escola no Barcelona B de Pep Guardiola. Este mais baixinho com o zero na camisola, tem futebol nota dez no pé esquerdo, no pé esquerdo e da cabeça aos pés. O primeiro contrato foi assinado num guardanapo de papel entre cafés num café, partilhados pelo conhecidissimo Carles Rexach e o desconhecidissimo Jorge Messi, pai deste Lionel. Dizer mais o quê? É um jogador à minha altura:1,70m. O rapaz de cabelo comprido tem pele azul-grená. Já vestiu as duas cores em mais se quinhentos jogos, mas esteve muito perto de não ter sido ninguém no futebol. O pai quis que ele abandonasse a bola quando ele se lesionou num ombro no tempo em que era guarda-redes. Ele guardou as luvas, mas não abriu os livros. Foi antes para ponta-de-lança e coisa não resultou. Foi antes para médio-defensivo e a coisa não resultou. Como já não podia voltar à baliza, por causa do ombro, havia apenas mais uma posição a ocupar antes de ser mandado embora pela porta pequena do futebol regional espanhol. Foi o melhor defesa jovem do Pobla de Segur. Foi para o Barcelona e aí já nem o pai insistia tanto nos estudos. Hoje chamam-lhe touro e Tarzan a este rapaz com ar de Sansão chamado Puyol. O sete é um dos pontas de lança mais baixos do mundo:1,75m. El guaje, que dizer o míudo e assim que o tratam. Em miúdo, com quatro anos, fracturou o fémur da perna direita. O pai, um mineiro que sonhava ter um filho futebolista, insistiu para ele chutar com o pé esquerdo e el hoje é um dos ambidestros mais famosos de Espanha. David Villa deixou Valência e o centro da área. Está a voar nas asas do Barcelona e continua nas bocas do mundo. Na outra asa, o autor deste golo, o dezassete, outro jogador à minha altura (1,70m), o único a marcar um golo em todas as competições do mundo numa só época. É o filho do senhor Ledesma. É o Pedro, Pedrito, Pedro Rodriguez, Pedro Rodriguez Ledesma. Os outros dois são os pais da melhor equipa de futebol do mundo. Estão no Barcelona desde quase sempre, conseguem ser qualquer um dos orgãos vitais deste corpo azul e grená que há-de sobreviver à passsagem do tempo.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Nem é tarde nem é cedo





















Seria incapaz de entrar num restaurante, invadir a cozinha, escolher os ingredientes, cozinhar e pagar a conta. Como também não seria capaz de entrar no consultório do dentista, injectar a anestesia, arrancar um dente e passar o cartão na máquina do banco. E nunca na vida entraria na oficina com os olhos postos nas latas, disposto a sangrar o carro, a encher com óleo novo e a deixar um cheque. Nem tão pouco teria o vagar de no talho desfazer o porco, fatiar a vaca e depois resolver a conta com o próprio bolso. Mas se tiver de chegar a um armazém e deixar lá ficar dinheiro em troca de um móvel para montar em casa, isso é ginástica sueca no orçamento familiar. Não é trabalhar de borla para o vendedor.

(primeira foto oferecida ao blog. Obrigado ZM)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Vinte minutos para amanhã





















Não saber o lugar onde esta imagem aconteceu. Não saber o dia em que foi. Não saber se estávamos atrasados ou se íamos chegar a tempo, se o verbo era o ir ou o vir. Saber que foi com o carro estacionado, o motor desligado, o rádio ligado, por acaso ali, de noite, quase de um dia para o outro, este minuto perdido. Havia música a encher o espaço, mas qual? Havia gente dentro o carro, mas quem? Havia um encontro combinado, mas porquê? E no fim saber apenas que este relógio está atrasado uma quarto de hora e que já só faltam vinte minutos para amanhã.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O arquipélago do almoço





















Mesa posta para oito pessoas, em que se sentaram cinco homens, dos quais um com barba, dois sem pêlos na cara, mais dois com bigode, um desses com pêra. Sobraram portanto três pratos, três copos, três talhares, três guardanapos de papel.
Para a mesa vieram pedidos de lombo assado, três, bacalhau à Gomes de Sá, um, frango com ervilhas, um, papas de sarrabulho, para um. Uma garrafa de água, dois copos com cerveja, ruiva e loira, um refrigerante castanho, uma caneca com vinho, tinto. Foram três cafés para terminar os pedidos.
A conta trouxe cinco parciais de cinco euros e vinte e sete cêntimos. Em Matosinhos. Na Casa Açoreana.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Chambre de bonne





















Nos filmes americanos os parques de estacionamento são lugares onde acontecem coisas más, na realidade europeia, este parque de estacionamento é uma coisa boa, cheia de vontade de partir. Nos filmes americanos, uma pessoa chega ao aeroporto para ir, nesta realidade europeia, uma pessoa vai ao aeroporto ver uma equipa de futebol a entrar num avião. Nos filmes americanos não há chambres de bonne, nesta realidade europeia há uma vontade louca de comprar dois bilhetes para Paris, escolher um arrondissement, escolher uma rua, escolher uma porta, bater a uma porta, perguntar se há vagas lá em cima no último andar, pedir chambre de bonne para duas pessoas, subir, subir andares, oito andares, andares, sete andares, o que tiver de andar, para subir pelas escadas e descer com o coração nas mãos e misturar os pés com a cidade. A cabeça já lá está.

(chambre de bonne é um micro alojamento no último andar de um prédio, independente do apartamento das famílias. Bonne por causa das criadas, que nos tempos senhoriais eram "bonne à tout fair". Há um quarto destes na página 235 dos Detectives Selvagens, do Roberto Bolaño)

Histórias de homens à prova de bala (1)





















Norte de Portugal, anos 80, resquícios do ensino secundário.
Estás com 12 anos, és novo no meio, não és dali, aqueles amigos não os teus vizinhos, não são os teus colegas de equipa no futebol, aquela freguesia não é a tua. E estás com 12 anos. O que corpo que tens já não é o que tinhas, foste de férias com uma voz, vieste do verão com outra, és alguma coisa à espera de acontecer.
Estás com 12 anos, os que estão com 18 têm pêlos na cara, pêlos nas pernas e tu não, os que estão com 18 anos estão como se estivessem da idade dos teus pais. É há sempre entre os que estão com 18 anos aquele que é o mais alto, o mais forte, o que veste mais roupas diferentes ao longo da semana, e conduz carros, coisa que só os pais e as mães fazem, e conduz motas, e conduz todos os outros a um estado dormente, reverente, simpático, respeitador, respeitador de quando o respeito tem aquela cara que o medo tem, e ele assim, tem os amigos todos que quer porque ninguém um inimigo assim.
Hoje fiquei a saber que morreu num acidente de viação há mais de vinte anos. Os meus sentidos pêsames.


- relógio escolhido por ter o 12 (XII) bem visível

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Um mais um é uma conta de multiplicar





















Mensagem (MMS)recebida às treze horas e onze minutos. É a montra de uma loja de meias num centro comercial. Acredito que a Raquel se lembrou de mim no mesmo segundo, que demorou mais tempo a procurar o telefone dentro da carteira do que a tirar a fotografia, que sorriu, que partilhou com as amigas o motivo da fotografia, este, que voltou a sorrir quando o indicador escolheu a tecla virtual de enviar, que me fez sorrir, surpreendido, ao abrir uma fotografia que vinha com esta montra, esta variedade de quadrados, redondos, azuis, vermelhos, dourados, grandes e pequenos, a hora multiplicada, e nós entendidos, um com o outro.

domingo, 16 de outubro de 2011

O sumo das bagas de zimbro é o vermute desta história




















Zimbro pode ser chuva ou orvalho. Zimbro pode ser uma árvore de folhas espenicentes. Vamos ao dicionário. Espenicente: que se transforma ou cobre de espinhos. Zimbro pode então também, para lém de chuva ou orvalho, ser uma árvore com folhas que se cobrem de, ou transformam em, espinhos. O sumo das bagas de zimbro, foi, no século dezassete, aproveitado por um médico holandês para combater os problemas de rins. Entendia este médico holandês, Francois de Boe Sylvius, que o sumo das bagas de zimbro purificava o sangue. Não muito longe da Holanda, na Alemanha, em Inglaterra e na Itália, utilziava-se um remédio chamado vermute para resolver os problemas de intestino, reumatismo e icterícia.
O Martini que hoje conhecemos vem da mistura das duas receitas anteriores e julga-se que  a mistura foi feita pela primeira vez, não numa farmácia, mas atrás do balcão de bar em Nova Iorque. A origem do nome da bebida tem muitas histórias, mas agora não há tempo para lá ir.
Este relógio Martini foi oferecido pela Martini ao Café Dias, com morada na freguesia de Arcozelo, em Vila Nova de Gaia, rua de S.Miguel, e abriu o apetite para dizer estas coisas. Foi um bom aperitivo.

Contado ninguém acredita





















Um hotel de cinco estrelas, um balcão de recepção em L, cinco recepcionistas, três homens, duas mulheres, uma terça-feira, oito horas da noite, seis relógios numa parede castanha (entre os quais, este), as horas em seis cidades diferentes, em quatro continentes diferentes, quatro portugueses ao balcão, dois homens e duas mulheres, dois quartos já pagos, uma taxa por pagar, relativa a um imposto local, três euros por dia, por cada uma das pessoas, quatro malas num carrinho para malas, um empregado para levar aos dois quartos, nenhuma gorjeta, muito obrigado, boa noite.

sábado, 15 de outubro de 2011

Saber ler o jogo em Marrakech





















Terça-feira, 11 de Outubro de 2011

A Yamaha Mate, motorizada japonesa de 1978, com 50cc, vai passar aqui muitas vezes, tem um quadro que pode ser azul, cinzento ou verde (meu favorito), e tem um avental branco sujo, e apesar estar a dar a informação de que ela há-de passar por aqui muitas vezes, hoje e nos próximos dois dias, não saio da daqui sem contar a vez em que a primeira, com o quadro azul, trazia sentado no banco de trás o Pauleta, com a camisola de Portugal do mundial de futebol da Alemanha em 2006, com o número nove nas costas. O Pauleta saltou para o interior de uma barbearia no instante em que a moto com quadro azul parou entre as tendas de comida e os toldos verdes da praça Jemaa El-Fnaa.
Nesta noite de terça-feira, entre o vapor dos preparados para comer, o cheiro da carne de porco, do açafrão, do caril, (e na penumbra do lugar) dois polícias conseguiram ter olhos e nariz para enxotar um engraxador de sapatos. O engraxador teve nariz e olhos para pressentir os polícias no mesmo ambiente e fugiu com a caixa e escova na mesma mão, vestia uma camisola preta com riscas finas amarelas nas mangas, tinha o emblema da real federação espanhola de futebol na clavícula direita, tinha o número um na barriga e o nome Casillas no peito. Ia com a camisola ao contrário e fugia com os olhos na nuca.
Nesta noite de terça-feira passou sem dizer nada o David Villa, com a camisola nova, a preta, do Barcelona, com o número sete. Passou despercebido, sem gel no cabelo e pareceu-me mais baixo. Cruzou-se com uma camisola principal do Barcelona 2010-11, número oito, passou por Iniesta que não estava a ficar careca e que era moreno. Cruzaram-se como se não soubesse um quem era o outro. Sentado na escuridão do chão, com a camisola azul e branca da argentina, o Gabriel Heinze vendia souvenirs e guardanapos.

Quarta-feira, 12 de Outubro de 2011

Não conseguiu passar despercebido entre dois raios de sol num souk, esta manhã: um Didier Drogba branco, camisola do Chelsea, azul, número onze, de braço dado com a mãe, uma senhora vestida com panos rosa, um lenço na cabeça e um chapéu branco em cima do lenço, que era rosa.
Não conseguiu passar despercebido, sentado ao guiador de uma MBK Variateur Swing, a pedais, o Bastian Scheweinsteiger, na camisola vermelha do Bayern de Munique. Nem ele olhou para o Cristiano Ronaldo, com o número nove e a camisola preta do primeiro em Madrid, encostado à porta de loja, a vender sapatos em pele e marcadores para livros, nem o Cristiano Ronaldo olhou para ele.
Nesta quarta-feira, mas à noite: o Alexis Sanchez passeava a pé com um amigo, tinha o número nove na camisola preta do Barcelona. O semáforo estava vermelho, o Frank Lampard não o respeitou e seguiu em frente, a espreitar o cruzamento, os carros, as motos, o perigo, mas seguiu em frente. Empurrava um carro de mão cheio de caixas de cartão amassadas. Tinha o número oito nas costas da camisola azul do Chelsea.
 Nesta quarta-feira, mas à noite, o Javier Pastore, camisola branca do PSG, numa Yamanha Mate de quadro verde ( o meu preferido) parece que já não conhece ninguém. Passa pela multidão com o olhar fixo muito longe no horizonte.
Nesta quarta-feira, mas à noite: o David Villa agora tem 1,90m, está a beber um café, veste a camisola do Barcelona 2011-12. Assomam de um beco onde existe o Café Aràb o Ozil de camisola preta, cabelo curto, e número dez e o Cristiano Ronaldo de peito para fora e cabelo à Cristiano Ronaldo com uma camisola branca com um sete dourado.

Quinta-feira, 13 de Outubro de 2011

Calção Kappa preto. Camisola da selecção de França número vinte e dois.  Sentado no suporte para as compras de uma MBK Swing Variateur, a pedais, parada num semáforo vermelho. Sem cicatriz. É o Frank Ribéry. Ao lado há uma rotunda. Ao lado da rotunda existem três camelos sentados.
No aperto de um souk mais apertado, sem luz directa, vem de frente um burro branco, o burro puxa um atrelado, o atrelado e o burro são guiados pelo Samuel Eto´o, que vem em pé em cima do atrelado, a guiar o burro com duas cordas, vestido com a camisola nove do Barcelona. O Eto´o.
Chega-se para cá o Totti, camisola dez gialorrossa, numa MBK Swing Variateur; anda por aqui um Benzema preto, que está a fumar e que tem a camisola nove, branca, do Real Madrid.
É meio-dia, o sol queima a cabeça, o Xavi atravessa a rua com balde de água na mão. Veste a camisola 6 do Barça 2010-11. Está mesmo muito calor.
Está sentado num mocho, num banco de madeira, o Fernando Torres, moreno, com bigode, com pêra, com cabelo preto, com dedos feios e chinelo no pé. Camisola nove, branca, do Liverpool.
Outro Ozil com o cabelo curto, mas com camisola branca e dez dourado nas costas. Um Buffon de manga curta, manga rosa e número um. O dezoito é outra vez o Heinze, da Argentina, está a percorrer a praça ao lado de um amigo com um chapéu vermelho. E um Simone Pepe, vinte e três da Juventus, raquítico, de 1,90m, avistado a partir daqui, do Restaurante Panoramique.
No aeroporto, um homem anónimo com a camisola do Arsenal sem nada nas costas. Acaba de chegar a Marrakech. É marroquino. Acredito que vá escolher o número vinte e nove e que vá mandar escrever o nome Chamakh.
Isto aconteceu mesmo assim. E vim embora.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Não entendo nada do que dizes





















Rolex, na Uncrate, no Ipad. E headphones. Iphone fotógrafo.

A felicidade de um homem poder dormir até tarde





















Situação número um: pelo calendário tinham passado 44 dias úteis. Dois meses inteiros em que um homem, por causa do emprego, se levanta todos os dias às 6 horas e 45 minutos. Ao fim desse par de meses, o mesmo homem aceitou o pedido que lhe fizeram para trocar  de horário numa sexta-feira, ficando com o horário da noite, cuja entrada ao serviço acontece às 5 da tarde. Ui, finalmente um dia da semana para dormir até tarde! Mas foi assim que aconteceu? Não! Nessa sexta-feira o telefone tocou às 6 da manhã (:( ) porque o vigilante não sabia da troca de horários e ligou a avisar de um incêndio numa fábrica.



Situação número dois: nesta sexta-feria que passou, passou um mês sofre o episódio anterior. O mesmo homem, nesta sexta-feira que passou tinha o primeiro de dia útil de uma semana de férias por causa de uma viagem que tinha marcado há seis meses. O que aconteceu? Conseguiu domir até tarde num dia útil? Não! Às oito da manhã, a namorada acordou assarapantada e disse: "acorda! acorda! estás atrasado!". Ele, que não estava atrasado para nada, estava outra vez acordado demasiado cedo num dia de folga.


Situação número três: esta segunda-feira marcava a terceira tentativa consecutiva de dormir até tarde num dia útil. Será que o homem conseguiu? Não! Porque a campainha de casa tocou ainda não eram nove horas da manhã. Ou foi o contador da água, ou da luz, ou para os bombeiros, ou do gás, ou testemunha de Jeová, ou vendedor de enciclopédia. O homem que voltou a ficar sem dormir até tarde num dia de folga, acordou, mas nem se levantou para ir ver quem era, porque se o tivesse feito, a única diferença era que estaríamos agora a falar em alguém da água, ou da luz, ou para os bombeiros, ou do gás, ou testemunha de Jeová, ou vendedor de enciclopédia, mas com um tiro nas costas.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A história do primeiro dia do resto das nossas vidas





















A redacção da SIC no Grande Porto (grande de nome, e não de adjectivo) tem duas produtoras: a Maria Calado e a Carla Moreira. Tenho mais episódios com a Mimi (a Maria) porque trabalho com ela há mais tempo, mas este, que aconteceu no dia a seguir ao décimo nono aniversário da primeira televisão privada portuguesa, aconteceu com a Carla, como a seguir se conta, na posição muito incómoda, para mim, de escrever na primeira pessoa do singular.

Telefonei para a SIC, deixei tocar duas vezes, desliguei. É um sinal de código e é nosso. Quem está perto dos telefones centrais vê o nome, porque surge no visor um nome em vez de surgir um número, e desta vez, quando Carla a olhou, viu que quem ligou fui eu, esta primeira pessoa singular, ligou de volta, poupou-me uns cêntimos.
Alô
Olá Carla. Preciso de um grande favor. Ei lá!, "interjeitou", e quanto me pagas pelo favor, perguntou, pago-te cinco euros e quarenta cêntimos, disse eu, ei que forreta, reclamou, cinco euros e quarenta cêntimos, insisti, cinco euros e quarenta cêntimos, lá aceitou.
E o que é que precisas que faça, perguntou, e eu lá respondi, fui ontem almoçar aí em frente, ao Tea Amo, fui lá comer uma salada eram quase cinco horas e eles não tinham multibanco e disseram para passar mais tarde para pagar e eu aceitei e depois fui aí para a SIC e com a recepção e o beberete (cocktail), os discursos, o entusiasmo, o Jornal da Noite em directo da nossa casa nova, só me voltei a lembrar de regressar ao Tea Amo para pagar a conta às dez e eles fecharam às sete e meia e eu pensava que fechavam às onze. Podes por favor passar por lá, quando fores almoçar, pede desculpa por mim e pagas a conta que eu quando regressar de férias dou-te o dinheiro. Está bem, ela disse, aceitando, e quanto é, perguntou, e eu respondi cinco euros e quarenta cêntimos. Devolvo-te o dinheiro e pago-te o favor. E ela a dizer, como quem exclama reticências e sorri numa conversa: olha que tu...

a foto: do vídeo Until She Comes, dos Psychedelic Furs, este, com o Richard Butler na posição de ponteiro de um relógio de sol, na nossa nova SIC.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Loucóste

(ouvir a música deste link)




















Alguém toca à campainha. Espreitar pelo olho da porta dá-me uma perspectiva angulada e ao longe de dois homens, cada um com o seu trompete na mão, cada um com o seu chapéu de pano na cabeça.
Sem perguntar por quem é, tiro a porta do trinco, deixo-a ficar encostada e regresso ao sofá, volto-me a sentar.
Os dois homens entram, arranjam-se de pé cada um de um lado do televisor e ficam a olhar por cima da minha cabeça para o lugar onde estava a mesa da sala e onde está uma bateria, com o amigo deles, muito parecido como Richie Tenenbaum. Trocam segredos rápidos com os olhos e começam a tocar os três, a bateria e os trompetes. Entra na minha sala um rapaz de cabelo comprido e camisola lilás de manga curta que já vem com o violino no queixo e o arco nas cordas. Entra na minha sala uma rapaz parecido com o homem que é parecido com o Richie Tenembaum, mas sem cabelo, e com um baixo. Entram na minha sala dois homens gémeos, mais ou menos com a minha estatura, um traz uma guitarra eléctrica na mão, o outro senta-se a um piano que não sei de onde veio. Entra na minha sala um homem alto, vem com uma barba loira, umas calças de ganga escuras e um blazer preto. Chama-se Matt Berninger e começa a cantar qualquer coisa sobre Londres. Esta viagem a Inglaterra, e a uma catedral em Los Angeles, não custou um centavo. A imaginação é barata, como barato vai ser o preço da roupa de uma loja low-cost  a abrir na esquina de Sá da Bandeira com Fernandes Tomás, no Porto. Já faltou mais tempo para loucóste ser uma das palavras mais portuguesas de sempre.


(exemplo: a bicicleta - como na imagem - é um bom exemplo de meio de transporte loucóste)

Número verde





















O velhinho número das emergências, entretanto reformado, esteve com o Sporting durante os dois jogos em que o Sporting só tinha dez jogadores para responder ao jogo de onze adversários: 115 minutos a ganhar, com densidade populacional menor, nos encontros com a Lázio, de Itália, em casa, e com o Vitória de Guimarães, de Portugal, fora.
Na competição doméstica e no confronto estrangeiro, o adepto leonino encara o treinador Domingos e ganha propriedade para lhe dizer como na canção de amor: foi em Setembro que te conheci. Setembro foi o mês de seis vitórias da equipa que acordou para a vida nos quinze minutos de fama do jogo em Paços de Ferreira.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Haverá sempre uma mulher ao telefone





















O pai não acredita na verdade que a filha lhe está a dizer, a filha que vem de Aveiro, do primeiro ano da universidade, no último dia útil da semana, a filha a dizer que não perdeu o comboio, a jurar que não perdeu o comboio, a suplicar que não perdeu o comboio e que não ficou a dormir na residência porque se deitou tarde, e não perdeu o comboio, está aqui ao lado no banco 34 B, do lado do corredor, agarra o telefone com a mão direita, penteia e despenteia o cabelo com a mão esquerda, repete que o comboio está atrasado e não ela, o comboio está a andar para o mesmo destino, mas uma hora mais tarde e a culpa não foi dela, adolescente de dezoito anos com cara de catorze, a culpa foi da máquina por ter avariado, antes de Aveiro, a cidade onde ela entrou neste atraso de vida.

No outro lado do corredor a mãe pergunta a sério? e sublinha o azar da filha de um dos últimos anos de um curso qualquer na universidade de Lisboa. Depois de a mãe desligar, a próxima chamada é para o namorado, mandam beijinhos e sofrem com mais uma hora de saudade e não se demoram ao telefone que assim custa mais, repetir o lamento e decidem esquecer a má sorte daquela hora e põem toda ansiedade na hora que há-de vir, mais feliz quando vier. Depois de o namorado desligar, liga para amiga, conta-lhe do carinho da mãe e do mimo do namorado e do comboio que esteve uma hora parado na linha. Entretanto a viagem passa por Aveiro e em Aveiro entra uma universitária com o acne do liceu.

Por pouco não pára de dizer o que está a dizer e pára de ouvir o que está a ouvir, a mulher com a camisola dessa cor da fotografia, porque quem vem das escadas da estação subterrânea de Espinho, um homem vestido com um pólo azul e umas calças cor de camelo, com óculos de sol dourados e lentes verdes parou nos degraus a tirar fotografias e ela na intimidade da sua própria conversa telefónica olha para este homem como se este homem não tivesse mais nada do que fazer ao tempo. Este homem tem: está a parar o tempo na hora deste momento em que passa a catraia magrinha que tinha entrado em Aveiro, preocupada com o pai e o pai preocupado com ela.

Quim, o bom da fita





















Num sábado à tarde deu por si a concordar em abrir as portas de sua casa para receber o correspondente do Expresso. E abriu. Foi fotografado com barba e foi fotografado escanhoado, não havendo explicação em parte alguma para o que foi antes ou para o que foi fotografado depois. O Joaquim é capaz de estar a chegar a esta página com o relógio mais caro deste muro de ponteiros. O fotógrafo desfocou a máquina, a marca e com isso desfocou-me o preço e a certeza de poder ter no pulso do Quim a mais valiosa peça desta exposição móvel. Mais caro, também ou é o dele ou é o da estação de comboios de Vila Nova de Gaia. Antes de sair desta história no próximo apeadeiro, resta-me a dúvida se o Quim, que até não é mau a fazer de mau, poderá um dia ser bom a fazer de bom. Abraços

Dez horas em Portugal continental e na Madeira, mais uma em Vila Nova de Gaia






















Entrou na estação das Devesas, em Vila Nova de Gaia, sentou-se no lugar 36 A - era uma cadeira do lado da janela, de frente para Lisboa, e felizmente o comboio estava a viajar nesse sentido - aparentava ter menos de vinte anos, não tinha cara de português, e não era, era mexicano, da Cidade do México, tinha cadernos e mal se sentou começou a escrever neles, e ao escrever neles estava a contar coisas sobre os poetas reais visceralistas, ele próprio era poeta, sobre Quim Font e os princípios sexuais das filhas de Quim, Angélica e Maria, e qualquer coisa em fundo e muito ao longe e ao de leve sobre Ulisses Lima e Arturo Belano.
O mexicano chamava-se Juan Garcia Madero e foi posto por Roberto Bolaño no papel de narrador do capítulo inicial do livro Os Detectives Selvagens. Sentou-se no lugar onde eu estava sentado e tomou conta da minha atenção às dez horas da manhã, e não às onze, conforme diz este relógio de alta velocidade.

domingo, 2 de outubro de 2011

Coisas que estes senhores nunca vão saber





















Que na carruagem com o número vinte e um, um alentejano reformado, culpa os talibãs se o comboio abranda e culpa os talibãs se as curvas são muito curvas. Culpa os talibãs se o comboio se atrasar, e se ele, inocente por causa da culpa dos talibãs, chegar atrasado ao almoço para o qual foi convidado pelos familiares do "rapaz" da "rapariga", a filha. E quando o comboio pára na linha, avariado, algures nas proximidades de Ourém, ele lá diz que depois a culpa é dos talibãs. Esteve a um talibã de levar um murro na tromba. Mas entretanto o comboio começou a andar.

Estes senhores nunca vão saber que o relógio da rapariga de cabelos encaracolados, em viagem no banco da frente, é reflectido nitidamente no vidro nas zonas de sombra e parece um fantasma das horas ao sol. Nem vão saber da fita amarela amarrada com um nó no pulso esquerdo.

Que a senhora professora vai perder um seminário na fundação Cupertino de Miranda, no Porto, e que o rapaz moreno de barba escura vai perder a ligação em Coimbra para uma cidade mais no interior.

Que minutos antes deste momento terminou o primeiro episódio de uma série sobre aparição de um soldado dos Estados Unidos, detido pela Al-Qaeda e desaparecido há oito anos no Iraque.

Que um telefone à janela estava tirar esta fotografia ao relógio da estação quando o intercidades parou com uma hora de atraso. Que o título ia ser as coisas que estes senhores nunca vão saber. Que só foram o título desta passagem por Pombal porque estavam ocasionalmente no enquadramento do relógio.

A anatomia de Reis





















Um joelho desfeito na perna esquerda, a rótula esmigalhada ao pontapé fez um ano, ficou um relógio no tendão posterior da coxa esquerda, que não dói necessariamente, é lume, do joelho à anca, por dentro.
Um biqueiro no tornozelo direito, no lado de fora, e até o tendão de aquiles abanou, no pé direito, dói durante a corrida, dói ao chutar com força, e do mesmo lado, o tendão entre o tornozelo e joelho, queima por dentro, perto do joelho.
Os ligamentos do joelho esquerdo tem vezes como um disco do travão do carro sem calços, no ferro.
O futebol é uma estrada difícil e só tem dois destinos: o céu ou o inferno. A máquina humana de um jogador quando dói pode estragar a equipa toda, mas quando dói e o corpo aguenta sem saber porquê, o esqueleto remendado e os pulmões saturados também podem aguentar uma corrida de cinquenta metros à espera de haver ainda óxigénio no cérebro para escolher o lado certo do guarda-redes e deixar a bola no fundo da rede e fazer o resultado que toda a equipa do Serzedo soube guardar até ao fim e neste dia o fim era uma taça prateada de um torneio de futebol em Gulpilhares.
Golo e troféu para os nossos mais antigos e fundadores companheiros dos veteranos do Serzedo, que estiveram sentados na parte de cima do balneário, lugar também conhecido por bancada, e que, três horas depois deste relógio, sorriram e abraçaram o verbo ganhar. A taça é nossa!