segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Haverá sempre uma mulher ao telefone





















O pai não acredita na verdade que a filha lhe está a dizer, a filha que vem de Aveiro, do primeiro ano da universidade, no último dia útil da semana, a filha a dizer que não perdeu o comboio, a jurar que não perdeu o comboio, a suplicar que não perdeu o comboio e que não ficou a dormir na residência porque se deitou tarde, e não perdeu o comboio, está aqui ao lado no banco 34 B, do lado do corredor, agarra o telefone com a mão direita, penteia e despenteia o cabelo com a mão esquerda, repete que o comboio está atrasado e não ela, o comboio está a andar para o mesmo destino, mas uma hora mais tarde e a culpa não foi dela, adolescente de dezoito anos com cara de catorze, a culpa foi da máquina por ter avariado, antes de Aveiro, a cidade onde ela entrou neste atraso de vida.

No outro lado do corredor a mãe pergunta a sério? e sublinha o azar da filha de um dos últimos anos de um curso qualquer na universidade de Lisboa. Depois de a mãe desligar, a próxima chamada é para o namorado, mandam beijinhos e sofrem com mais uma hora de saudade e não se demoram ao telefone que assim custa mais, repetir o lamento e decidem esquecer a má sorte daquela hora e põem toda ansiedade na hora que há-de vir, mais feliz quando vier. Depois de o namorado desligar, liga para amiga, conta-lhe do carinho da mãe e do mimo do namorado e do comboio que esteve uma hora parado na linha. Entretanto a viagem passa por Aveiro e em Aveiro entra uma universitária com o acne do liceu.

Por pouco não pára de dizer o que está a dizer e pára de ouvir o que está a ouvir, a mulher com a camisola dessa cor da fotografia, porque quem vem das escadas da estação subterrânea de Espinho, um homem vestido com um pólo azul e umas calças cor de camelo, com óculos de sol dourados e lentes verdes parou nos degraus a tirar fotografias e ela na intimidade da sua própria conversa telefónica olha para este homem como se este homem não tivesse mais nada do que fazer ao tempo. Este homem tem: está a parar o tempo na hora deste momento em que passa a catraia magrinha que tinha entrado em Aveiro, preocupada com o pai e o pai preocupado com ela.

Sem comentários: